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“Primeiro Deus, depois esse povo”

A vida de Edmilson Batista Campos

No quintal da Pousada Pôr do Sol (conhecida em Canudos como o hotel de Joselina), no acampamento do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), Bião se acomoda devagar sob a sombra de um pé de algaroba. O pé direito inchado, por conta de uma queda de moto, teimava em entrar na sandália bege de couro. Ele ajeita a cadeira de jantar no canto do terreiro, olha o sol do fim de tarde que atravessa o filtro azulado dos óculos e sorri. A camiseta, com a frase estampada “Canudos não se rendeu”, não deixa dúvida de que ele tem muito orgulho de onde veio e da história dos próprios antepassados. 

 

No pulso, o relógio marca às duas horas de conversa que tivemos. Na cabeça, o chapéu de couro que não foi tirado por um instante sequer. Ao fundo, a paisagem de que ele mais gosta em toda a cidade: o açude de Cocorobó. Ao redor dele, as serras que foram muralhas do Arraial de Belo Monte. O cenário tem gosto de infância. “É a paisagem mais bonita do mundo”, ele diria se alguém perguntasse.


Foi ali perto que Edmilson Batista Campos, conhecido por todos como Bião - apelido que recebeu ainda na infância por “ter um corpo avantajado” - nasceu, em 22 de maio de 1963. Veio ao mundo na Rua do Cachorro Quente, na antiga Pombinha Branca, “era bem por ali”, ele aponta para localizar. No local, ficou pouco tempo e logo a família se mudou para uma área que ele denomina como lagoa, “é ali perto de onde hoje é o centro de Canudos”, ele explica. A vila era um embrião de cidade em crescimento: barracos, casas de barro, gente chegando com o DNOCS, feira que se formava, ruas surgiam. O local ganhava forma.

BIÃO CRIANÇA - RETIRADO DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE JOÃO BATISTA LIMA.png

Bião durante os primeiros anos de infância - Fonte: dissertação de mestrado de João Batista Lima

A primeira memória que vem à mente quando pensa no passado é a da infância: “Criança, correndo no meio da rua, brincando, tomando banho de chuva, fazendo estripulias como toda criança gosta”, ele sorri ao comentar. O menino corria entre a lama da beira do açude e o chão batido, o corpo quase sempre molhado dos banhos no reservatório. A casa onde cresceu era simples, de barro, o piso de chão batido era liso como cimento queimado, “chegava a ficar brilhoso quando passava o pano bem-passado”.

 

A disciplina de casa vinha de uma maternidade firme. A mãe, Maria Batista Campos, era doméstica, teve nove filhos e trabalhava o dia inteiro nos afazeres da casa. Por conta das dificuldades, colocava a lei: “se a gente quisesse jogar bola no final da tarde, antes tínhamos que prender umas galinhas”. Senão, castigo. À noite, a luz na comunidade era ligada a motor de óleo diesel. Bião sempre escapava junto de Araújo, um dos irmãos, para brincar de guerrô - brincadeira em que um grupo de participantes precisava prender outro grupo dentro de um círculo para conseguir vencer a rodada. Os postes da praça se apagavam às 22h, “quando eram 21h45, as luzes piscavam, aí a gente já sabia que era hora do toque de recolher.”

 

Edmilson gostava de fazer estripulia e às vezes passava do horário junto de Araújo. Em dias como esses, Dona Senhora — apelido da mãe — os esperava atrás da porta na volta para casa. Bião é o mais novo dos irmãos e, no quesito castigo e surra, também era o mais fraco. “Ela colocava a gente de castigo, mas eu chorava logo, era fraco, aí ela amolecia e me liberava”, relembra com um pequeno sorriso.

 

Em casa, os sons mais comuns que ele lembra são das músicas que Dona Senhora cantarolava. Enquanto lavava os pratos, varria a casa ou passava pano no piso de chão batido, ela gostava de cantar “Assum preto”, “Olê, mulher rendeira”.

Bião relembra o que a mãe gostava de cantar
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A família era grande, Bião teve oito irmãos: Araújo, Agnaldo, Lucinha, Tiara, Marilene, Zé Alaíde, Toinho e Terezinha. Alguns deles tomaram outros rumos cedo, ainda durante a infância do pequeno Edmilson. Marilene foi a primeira a deixar o ninho. Zé Alaíde, Toinho e Terezinha foram embora depois. Os últimos dois se afastaram. Mas, Zé Alaíde, sempre retornava para os braços da família.

 

A data em que ele vinha geralmente era sexta-feira da paixão, não vinha em junho nem em dezembro, mas na semana santa ele sempre tava por aí. Todo ano trazia um galão de vinho de cinco litros. Mãe gostava de tomar um vinhozinho e ele sempre trazia”.

 

Bião e os irmãos que ficaram precisavam exercer algumas funções em casa, como carregar lenha, acender fogo, levar o almoço na roça para o pai, Francisco Ferreira Campos, quando a sirene do DNOCS dava meio-dia. Além de lidar com a terra, Seu Francisco também era carpinteiro e uma das confecções dele foi uma caixa de engraxate para o filho ganhar um trocado aos domingos na feira local.

 

“Era uma fila grande de meninos que engraxavam, bem uns oito, mas sempre tinha cliente para todos. Dava sempre para tirar um trocado da bala, da roupa, às vezes até ajudava em casa”, afirma Bião ao lembrar do primeiro ofício que exerceu.

 

O quarteirão em que Bião morava era uma extensão da sua casa. Em volta, os vizinhos preenchiam a vida do local. O mais próximo era Zé do barracão, vizinho de parede, e os filhos dele, “Jadinho, Ném, todos eles são meus amigos de infância”. Deilson também era vizinho próximo. Do outro lado da rua estava a dona Maria de Cesário, Raimundinha, Brasilino. “Tinha também Zito Piorron, Sandoval, o pessoal de Zefa de Antônio Galego”, enumera os antigos vizinhos que continuam frescos na memória.

 

À noite, a comunidade se reunia para prosear e ele sempre ouvia da bisavó, Hermenegilda — que foi moradora do arraial de Belo Monte — histórias sobre o massacre sofrido pelas conselheiristas em Canudos. “Ela contava que, quando vinham as expedições, eles enterravam o pouco que tinham de valor, e quando as tropas iam embora, procuravam, às vezes nem encontravam mais.”

 

O pequeno Edmilson também ouvia sobre a vida da bisavó que foi levada para o Rio de Janeiro depois da guerra. Além de histórias da família, contos do folclore nacional também eram lembrados nas esteiras de palha que as pessoas jogavam nas calçadas para sentar. “Contavam histórias de lobisomem, do papa-fígado, eram histórias que eu tinha medo quando criança.”

 

Havia também a economia pequena dos serviços. Um senhor chamado Zé Pedro era dono de uma padaria. Seu Custódio era proprietário de um armazém que abastecia a comunidade. 

 

A escola onde Bião estudou ficava perto da casa dele. Edmilson comenta que o local oferecia poucas matérias e as que ele mais gostava eram geografia e história. Mas, “Matemática eu apanhava muito e também não gostava de português”. O menino foi aluno de Luiz Cassiano, que era adepto da palmatória “pesada”, como relembra com um certo humor.

Memórias sobre a palmatória de Luiz Cassiano
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Naquela época, para muitos, estudar era sofrimento por falta de transporte, condições estruturais dos prédios escolares, cadeiras ruins. Mas, para ele, o obstáculo foi de outra ordem: “safadeza mesmo”, admite secamente, em um tom de autocobrança. “Na frente, a gente sente falta. Às vezes eu digo: 'se eu tivesse estudado, eu estaria melhor'. Hoje faz falta, com estudo tá difícil, imagine sem estudo”, afirma com um tom de arrependimento na voz.

 

Bião passou muitos anos sem estudar e retornou à escola entre o final dos anos 2000 e o início dos anos 2010. Ele cursou o ensino médio no programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas não chegou a concluir o segundo grau. “Já no final, faltando poucos meses, tive um início de depressão e parei novamente, mas ainda penso em concluir.”

 

Ao lembrar da infância, as memórias que mais fazem Edmilson feliz estão ligadas ao açude e às brincadeiras com os amigos. “A gente jogava bola na beira do açude e depois tomava banho. Do que eu mais me recordo é do açude.” Para ele, as lembranças à beira do Cocorobó são as mais bonitas porque ele fazia muita questão de estar naquele local. “A gente ia escondido de mãe, chegava em casa com o nariz vermelho e apanhava.”, Bião ri ao lembrar dos momentos.

Bião conta causo da infância no açude
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A chegada da adolescência e da rebeldia para Bião

A adolescência chegou pela porta da rua para Bião. As noites tinham músicas das serestas e de algumas boates, como a Help, que pertencia a Antônio Geraldo (fazendeiro e empresário local). Mas, segundo Bião, o que havia de mais esperado no calendário, era o São Pedro. Eram dois dias de festa, 29 e 30 de junho, “a cidade se mobilizava. A rua ficava enfeitada com as barracas, e a festa era realizada ali no Comaf [Colégio Municipal Arnaldo Ferreira] ou no clube local”.

 

Essas não eram as únicas programações do calendário festivo da Canudos em que Bião cresceu, havia as festas dos povoados e das fazendas. A festa do Carvalho, no Mandacaru, a do Simplício, a festa de São Sebastião, no Rosário, a do Riacho das Pedras. Algumas dessas festas nos povoados da região, como Rosário, distante 22 km, e Riacho das Pedras, distante 24 km, Edmilson chegou a ir a pé com os amigos. “Saímos daqui cedo da noite, quando chegamos lá a festa já havia acabado e ainda chegamos sujos”, ele sorri ao lembrar da estripulia de adolescente.

 

Em uma das festas em que foi com os amigos, Bião pegou carona na picape de João da Mata (morador da cidade que trabalhava com transporte). Naquela noite, ninguém da turma tinha um tostão nos bolsos para pagar a passagem e tiveram a sorte de Faustina de Zequinha (antiga dona de um hotel) estar no carro para salvar o grupo.

Bião fala sobre o episódio em que Faustina de zequinha salvou a noite
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Bião gostava de dançar agarrado com as moças nas festas que ele frequentava. Além da dança, para se divertir, ele começou a consumir álcool cedo, “peguei a beber cachaça com 14 anos, dando trabalho à mãe. Saía de casa meio fugido para ir às festas e bebia com os amigos”, conta com uma expressão séria, como quem desaprova as próprias escolhas.

 

Se a adolescência trouxe desobediência e rebeldia, fortaleceu amizades antigas, daquelas que ficam quando a música acaba. Bião os enumerou com carinho: “Jair de Amorim, Zeca do Pão, Francisquinho, Zé Luciano, Neguinho de Narinho, Nem de Zé do Barracão, Bira de Ozinho e muitos outros…”.

Esses são alguns dos amigos que fazem parte do baú de memórias de Bião. Estão nos banhos no açude, no futebol aos fins de tarde e em tantos outros momentos. A vida obrigou cada um a seguir um caminho diferente, entretanto, a amizade ainda se faz presente em cada encontro. “Sempre que a gente se vê, relembramos as histórias, contamos os mesmos causos daquela época”. Ele garante que preservou todas essas amizades ao longo da vida.

 

A nostalgia se faz presente no rosto dele ao falar sobre os amigos já falecidos que deixaram saudades na turma. Ele lembra que o grupo gostava de se reunir na esquina de onde hoje é a loja de Miriam - comerciante local - para “tomar uma pinga e contar anedota”.

Dias de Serviço Militar em Pernambuco

Bião de Canudos durante o serviço militar em Petrolina - Acervo pessoal de Bião

Ao chegar à casa dos 20 anos, no início da década de 1980, Edmilson resolveu passar uma temporada com uma das irmãs no Rio de Janeiro. Ele morou na Baixada Fluminense, região metropolitana da capital carioca. Por lá, ficou seis meses e não conseguiu nenhum emprego fixo, “fazia uns bicos de vez em quando, mas era pouco”. Antes de embarcar para o Sudeste, Bião havia se alistado no 72º Batalhão de Infantaria da Caatinga, em Petrolina-PE. Quando chegou a época de se apresentar, Bião resolveu dar as costas à vida entre os cariocas e fluminenses. “Resolvi vir embora e me apresentar no quartel, fiquei com medo de não aparecer e dar problema depois.”

Nos primeiros seis meses, o Soldado Campos, como foi denominado, sofreu bastante e pensou em sair do serviço militar: “vou pular esse muro, não vou ficar aqui não, eu pensava”. Com o passar do tempo, ele ganhou espaço, fez amizades na turma e resolveu ficar mais um ano. A vida melhorou, mas a saudade de casa e da namorada e atual esposa Mária José (Zezeca), crescia desproporcionalmente. “Até pensei em fazer um curso e ficar, mas veio na cabeça a vontade de voltar para casa. Vim embora”, afirma com categoria sobre a decisão.

 

Uma vez me perguntaram por que eu não quis seguir carreira lá, respondi: fiz carreira de lá para cá”, Bião ri ao lembrar do diálogo.

O acidente que quase calou a voz de Canudos

Anos mais tarde, o destino resolveu colocar uma pedra no meio do caminho de Bião. Uma pedra não, um tronco de árvore. Em 1987, Bião já se apresentava como cantor em festas tanto em Canudos quanto em outros locais da circunvizinhança. Uma dessas apresentações seria realizada no distrito de Pilar, em Jaguarari-BA.

 

Bião e mais dois amigos, Albertinho e Pinguim, estavam com uma apresentação marcada e viajariam em um ônibus que fazia a rota Canudos-Juazeiro (BA) durante a madrugada. Antes de embarcarem, um homem apareceu e ofereceu uma carona para eles de carro. Os três aceitaram imediatamente e foram na carroceria do veículo.

 

Segundo Edmilson, o condutor do carro parecia ter bebido antes de iniciar a viagem e foi em todo o percurso com excesso de velocidade. Naquela época, o distrito de Pilar, em Jaguarari, crescia junto à expansão da atividade mineradora. Próximo ao destino de Bião, algumas máquinas haviam desmatado uma área com um trator e ficaram alguns troncos das árvores que foram arrancadas.

 

A mistura de álcool, volante e velocidade fez com que o motorista da Pampa (modelo de carro da marca Ford) passasse direto em uma curva, batesse o veículo em um tronco e causasse o episódio mais traumático da vida de Edmilson. A data do acontecimento, 29 de maio de 1987, se tornou uma marca permanente na história de Bião, como se fosse uma tatuagem, um ponto de referência na memória.

 

Com a pancada da batida e a falta dos itens de segurança na carroceria do carro, Bião, Pinguim e Albertinho foram arremessados. Bião caiu sobre um bico de madeira que perfurou a perna dele e causou uma ferida que, mesmo depois de quase 40 anos, ainda provoca dores. Além da perna, por pouco ele não passou a enxergar o mundo com apenas uma das janelas. Um pedaço de pau entrou em um dos olhos e quase o deixou cego.

 

Os três foram levados ao hospital de Pilar, mas Albertinho e Pinguim não resistiram aos ferimentos do acidente. Bião perdeu dois dos seus companheiros mais fiéis em questão de horas. Se agarrando à vida com toda força que restou, Edmilson se recusou a morrer. De Pilar, foi transferido para Juazeiro-BA.

 

Depois do acidente, não me lembro de mais nada, apaguei e só acordei no outro dia. Estava arrasado, todo dolorido, gritando de dor”, fala com tristeza na voz e um olhar vazio sobre o acontecido.

 

Na cidade ribeirinha, passou por alguns hospitais até ser internado no Serviço de Ortopedia e Traumatologia Especializada (SOTE). No local, foi acolhido pelo Dr. Roberto Bastos, médico ortopedista e fundador da instituição. “Ele operou minha perna que tinha um buraco muito grande e cuidou de mim. Todo dia, de manhã, ele passava no meu quarto. Quando ele passou a ter certeza de que eu ia escapar, até brincava comigo”.

 

Bião ficou nove dias internado no local e, durante esse tempo, não sabia o que havia acontecido com os amigos. Só depois foi informado que Albertinho e Pinguim haviam o deixado. Na época do acidente, Bião e sua esposa estavam desempregados e a recuperação elevou os custos da vida. A partilha e a solidariedade ao próximo foram pilares fundamentais da fundação do Arraial de Belo Monte e essas raízes se perpetuaram no tempo para encontrar Edmilson no momento mais difícil da vida dele.

Bião relembra a ajuda que recebeu da comunidade canudense
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Além das sequelas físicas, o trauma o abalou psicologicamente. As dores físicas, o risco de morte e principalmente a perda dos dois grandes amigos fizeram com que Bião passasse por um episódio depressivo.

 

Fiquei uns dias meio desorientado, como se eu também tivesse morrido. Passei um tempo isolado, não queria ver ninguém. Éramos amigos, vivíamos juntos. Albertinho foi em casa um dia antes, brincou com Leonardo e depois aconteceu aquilo. Me abalou muito”. Explica Bião buscando um ponto no horizonte para sustentar a tristeza do olhar.

A dureza da vida longe do Sertão

Com o passar do tempo, com a ajuda da família e dos amigos, Bião conseguiu se recuperar e retomar a vida. Desde a adolescência, ele era trabalhador e “nunca enjeitava serviço”, mas as dificuldades financeiras pesaram nas costas e, como tudo que fica pesado no Norte, cai para o Sul(deste), região vista na época como uma chance de desenvolvimento pessoal, financeiro e de melhora de vida, em oposição a um Nordeste marcado, na época, pela seca, escassez e falta de recursos - mais do que um cenário natural, um quadro constituído politicamente. Bião seguiu a sina de outros tantos irmãos nordestinos e foi mais uma vez tentar a vida em algumas capitais do país.

 

Em 1989, Edmilson resolveu migrar para São Paulo, lá morou em “um quartinho” com uns amigos. Ficou pouco tempo na metrópole, somente quatro meses. Não conseguiu emprego, fez alguns bicos, boa parte do dinheiro que recebia, enviava para a família. A vida na maior capital do país o sufocou e ele resolveu voltar para os braços do seu povo.

 

Além de São Paulo, Edmilson também trabalhou em algumas cidades no Nordeste. Em Aracaju-SE, o sogro da sua irmã era síndico de um condomínio e conseguiu um emprego para Bião de ascensorista de elevador, entre dezembro de 1984 e outubro de 1985. A capital sergipana foi um dos locais em que ele mais demorou longe de casa: cerca de um ano. Nos primeiros anos da década de 90, Bião conseguiu um bico para tocar em alguns bares em Salvador-BA. “Um argentino tinha uma barraca na praia de Itapuã, eu tocava nos finais de semana. Sexta eu tocava em um bar e sábado e domingo, na praia”.

 

Deixar o Sertão e ir para as capitais sempre foi motivo de muita dor para Bião. O único elemento da vida que fez com que ele saísse de Canudos foi a necessidade financeira. “Tinha que adquirir alguma coisa, necessitava trabalhar”, ele diz. A partida sempre molhava o rosto de Edmilson.

 

Durante alguns anos, ele viveu a realidade de muitos brasileiros até hoje: muito trabalho e pouco dinheiro. Os pais dele e os sogros os ajudavam. “Um salário mínimo com a pessoa tendo família é complicado. A gente ia fazendo o que dava pra fazer”. Durante as migrações que fez, tudo era incerto, a única constante era a saudade. Segundo ele, foi só o que trouxe na mala em todas as voltas. Saudade da esposa, da mãe e do Sertão. “Eu não troco meu Sertão por nada. Você é doido! Por capital nenhuma. A gente está acostumado aqui no sertãozão, sossego, paz”, afirma, enquanto olha ao redor e enfatiza a paixão pelo território com o coração cheio de orgulho.

 

Salvador foi o último local fora do Sertão em que Bião morou. Em 1995, durante o mandato de Manoel Adriano Filho, em Canudos (Dr. vavá, como é conhecido na cidade), foi realizado um concurso público e Bião conseguiu ser aprovado em uma vaga de vigia. Ele tomou posse no dia 1º de agosto daquele ano, “fez 30 anos agora”, ele conta o tempo. Esse foi o emprego que garantiu estabilidade financeira para ele e a família. “Xavier foi quem assinou minha carteira, lembro até hoje.”

As felicidades e as dores de ser pai

Entre o exército e o acidente, em 1984, nasceu o primeiro filho, Leonardo Campos. Léo de Bião — como é conhecido em Canudos — é o primogênito de quatro filhos que Edmilson trouxe ao mundo com Maria José (Zezeca). Quando Léo nasceu, Canudos ainda fazia parte do território de Euclides da Cunha, não possuía maternidade e as luzes ainda eram à motor. Zezeca deu as dores de madrugada e Bião saiu rua afora para procurar dona Mariá, a parteira do local.

 

Dona Mariá era muito generosa, abaixo de Deus, o nascimento de meus filhos eu agradeço a ela. Não fazia cara feia para ninguém, qualquer pessoa podia ir atrás a hora que fosse que ela atendia.”

 

Zezeca sentia as dores, mas a pessoa mais nervosa no local de nascimento de Léo era o próprio Bião, “parecia que quem ia parir era eu, me deu uma suadeira da porra”, ele ri ao contar a história. Durante o nascimento, a parteira tentava acalmar o jovem pai. Para realizar o parto, Dona Mariá tinha um ritual próprio, antes de começar a puxar a criança, ela benzia a mãe e o filho. As ferramentas de trabalho dela eram um candeeiro, uma garrafa de azeite e uma tesoura para cortar o cordão umbilical.

 

Desse jeito, nasceram inúmeras crianças em Canudos, inclusive quatro dos cinco filhos de Bião: Léo, Laion, Luanda e Bianca. Para o pai, um dos motivos de maior satisfação do mundo é receber um filho. Um dom, uma dádiva poder ter uma nova vida nos braços. A única sensação possível é a de felicidade.

 

Mas esse prazer se transformou em frustração com a morte da pequena Bianca, que tinha menos de um ano. A menina adoeceu e foi levada pelos pais para alguns hospitais de cidades da região a fim de descobrir e tratar a doença. Zezeca, Bião e Bianca passaram por muitos médicos, mas não conseguiram um diagnóstico. Sem encontrar respostas na medicina tradicional, a família recorreu a rezadores e, apesar dos esforços empregados para salvar a criança, ela não resistiu.

 

Foi difícil lidar com isso. A gente recebe um filho com tanta alegria, tanta satisfação… A gente ficou triste, mas Deus sabe de todas as coisas.”

 

No início dos anos 2000, Bião viveu novamente a felicidade da chegada de mais uma filha: Victória. Um dos irmãos dele, que morava em São Paulo, teve a menina lá e foi a Canudos com ela ainda pequena, menos de um ano. Nas palavras de Bião, esse irmão era “meio desorientado” e resolveu deixar a criança aos cuidados de dona Senhora, que não tinha mais condições físicas de tomar conta de um bebê por conta da idade avançada. Bião morava ao lado da casa da mãe e levou Victória para casa. “Zezeca e eu cuidamos e ela ficou com a gente, é nossa caçula”, fala com carinho sobre a filha.

 

Já o irmão deu notícia nos “primeiros dias” e desapareceu. Nem visita, nem contato, sumiu. Ninguém sabe se ele está vivo ou morto, não foi mais visto por conhecidos. Pelas contas que Bião fez, se esse irmão estiver vivo, deve estar na faixa dos 50 anos.

 

Todos os filhos já estão grandes, criados, mas a relação com o pai é de respeito e carinho. Edmilson não tem do que reclamar dos quatro, fala de todos com tanto amor que é quase possível pegar o sentimento no ar. “Meus filhos têm aquele respeito comigo, nenhum me deu trabalho, eles nunca me responderam, a gente nunca discutiu.”

 

Para criar todos da forma que achava mais correta, Bião entendeu que, mais do que orientar, precisava ser um exemplo a ser seguido. Enquanto os quatro cresciam, ele sempre buscou fazer o que achava certo para que, quando algum deles errasse, ele pudesse cobrar. Bião entende que um pai que não está no caminho correto, não consegue passar bons valores.

 

Os filhos cresceram, o tempo fez dobras e de pai, Bião se tornou avô. Na hora de lembrar da quantidade de netos, ele tropeça nas próprias contas e, ao chegar no resultado, afirma como quem quer perguntar: “É oito, né?”. Estou perdendo a conta”, e ri da própria confusão. Nos dedos, ele repetiu algumas vezes para lembrar que são: dois de Luanda, três de Laion, duas de Léo e uma de Vitória.

Para ele, ter neto é muito gratificante, como se o mundo devolvesse em forma de carinho toda a luta travada durante a vida.  “Neto é como se fosse filho”. O carinho é imenso, mas o trabalho, quando estão todos reunidos, é proporcional. “Eu não aguento quando estão todos juntos, dá uma agonia na cabeça”, Bião ri ao falar da bagunça que os netos fazem quando estão reunidos.

 

Entre o carinho, o zelo que tem por todos e o riso para falar da bagunça das crianças, ele se reconhece. “Eu gosto de criança, graças a Deus tenho netos.”

 

O agradecimento a Deus por aquilo que tem de bom é uma marca carregada durante a vida inteira. Bião é crente na existência do Deus cristão. Católico, tradição que herdou da mãe, que era muito ligada à igreja, ligação que ele também faz questão de manter. Edmilson, que já passou por tantas dificuldades durante os dias na terra, acredita na proteção divina para seguir caminhando.

 

Todos os dias eu procuro chamar por Deus para me defender das horas difíceis, sei que ele não vai me abandonar. Tenho muita fé em Deus. Se você não tiver fé em Deus, vai se apegar em quê?”

 

Ele gosta de frequentar a missa, apesar de admitir um afastamento recente. A crença de Bião é grande, mas as manifestações são reservadas à própria intimidade. Ele cultiva o hábito de fazer orações em silêncio quando está só, no silêncio da cama, na escuridão das noites ou em outros momentos em que o mundo ao redor permite acontecer essas reflexões. “Busco falar com Deus e sempre peço proteção para minha família, para os meus filhos e meus netos”. Talvez ele agradeça também a generosidade que a vida lhe apresentou. No balanço, ele tem a certeza de que valeu a pena.

 

O relógio no pulso de Bião marcava 19h12 e o Sol já havia deixado o Sertão há algum tempo. As luzes do quintal do hotel de Joselina já estavam acesas. Ele alternava entre ficar com as pernas cruzadas ou não, e falava sobre a rotina que tem atualmente. “Gostava de ficar lá no rancho, mas esses dias a casa está em reforma, não fui mais. O lugar que eu mais gosto de ficar é em casa, sou caseiro. Às vezes dou uma volta na rua, sento no ponto onde ficam uns coroas, ali na frente do açougue, mas não sou muito de sair.”

 

Eu amo essa terra demais. Eu gosto de tudo. Daqui só saio para o cemitério”, conclui antes de pegar o violão para alimentar o maior vício que possuí: a música.

Reportagens: Levi Varjão

Orientação: Geilson Fernandes

Desenvolvimento do Site: Álex Brandon

Este produto é um projeto experimental desenvolvido como Trabalho de Conclusão de Curso da graduação de Jornalismo em Multimeios.

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